Workshop Populações Brasileiras

Transcrito da Revista Ortodontia, publicação oficial da Sociedade Paulista de Ortodontia, V. 23, N 3; outubro/novembro/dezembro, 1990

Cléber Bidegain Pereira *
Francisco M. Salzano **
Marília Carvalho de Mello Alvim ***
Kurt Faltin Junior ****

 

No universo dos ortodontistas, há consenso de que os dados cefalométricos, indicativos de normalidade, variam em populações de diferentes regiões geográficas. Impõe-se, portanto, a necessidade de caracterizar, antropofisicamente, o indivíduo para que possa ser analisado cefalometricamente.

Infelizmente, porém, a literatura ortodôntica brasileira carece de caracterização das nossas populações. Tropeça, inicialmente, em dificuldades com a nomenclatura, conceitos sócio-antropológicos e a inexistência antropofísica do Homem Brasileiro. Motivos pelos quais nos propomos a uma tentativa de esclarecimento, objetivo deste “workshop”.

Considerações

1.  Todas as sociedades humanas têm a mentalidade metódico-classificante. E nós, que trabalhamos com ciência, tentamos classificar os indivíduos abrindo chaves, divisões e subdivisões na suposição de que isso seja exato, como ocorre na classificação dos objetos que podem ser separados em grupos de qualidades diferentes. Na espécie humana, devido à grande variabilidade e complexidade de seus grupos constituintes, é extremamente difícil e, muitas vezes, inoperante estabelecerem-se uma classificação e nomenclatura raciais.

2. Não há nenhuma evidência científica de que diferentes grupos raciais possam ter comportamentos psíquicos qualitativamente diferentes. Ainda assim encontram-se, no passado, tentativas de eugenia e movimentos racistas que envergonham a história dos povos. Em reação a estes acontecimentos, a UNESCO, reunindo renomados cientistas, em 1950 e depois em 1951 e 1964, procurou desmistificar o termo raça, com seus célebres manifestos sobre os “ASPECTOS BIOLÓGICOS DA QUESTÃO RACIAL”. Daí para cá, tem-se procurado evitar o uso do termo raça. Isso veio favorecer os bons conceitos sócio-antropológicos; porém, de certa forma, perturbou os conceitos antropofísicos.

3. Reportando-nos às origens do homem, encontramos duas teorias: a monocentrista (ou monofilética), segundo a qual a espécie humana teria surgido em uma única área; e a policentrista (ou polifilética), pela qual a espécie humana teria surgido em, pelo menos, três pontos diferentes da terra. De uma ou outra maneira, o homem, curioso e conseqüentemente aventureiro, dispersou-se por todo o planeta. A primeira grande migração, ainda no estágio Homo erectus, desenvolveu-se da África para a Europa e Ásia. Outra grande migração ocorreu, já ao nível de Homo sapiens, atingindo a Austrália e a América. Como exemplo muito marcante desta última dispersão, podem-se indicar os grupos mongólicos do norte da China que, atravessando a Beríngia, percorreram desde as tundras geladas da Sibéria até a Patagônia, em caminhadas que levaram, aproximadamente, 30 mil anos, espalhando-se pelas três Américas. Estes grupos foram se separando, pelas migrações, adquirindo características próprias, diferentes das populações de origem. Através dos processos de mutação, seleção natural, deriva genética e fluxo gênico, eles foram adquirindo caracteres físicos peculiares, formando várias populações. Pelo relativo isolamento – pois estavam confinados geograficamente em determinadas áreas – adquiriram também culturas próprias, formando inúmeras etnias ou povos. Ocorreu, então, a delimitação de territórios e, mais tarde, alguns grupos atingiram o nível de Estado. Assim surgiram novas populações e novas etnias.

4. O homem, juntamente com a cultura (utilização do fogo, domesticação de plantas e animais, descobertas e invenções, etc.) continuou sua caminhada. Em determinado momento, com a crescente evolução dos meios de transporte, inverteu-se o ciclo. Grupos até então relativamente isolados, passaram a trocar, mais acentuadamente, itens culturais e genes. Miscigenaram-se raças e culturas, formando-se outras raças e etnias. Os territórios, inicialmente delimitados exclusivamente pela ocupacão, em níveis culturais rnais elevados, evoluíram para nações politicamente organizadas. Porém, etnias e raças, a cada dia que passa, perdem, mais e mais, suas peculiaridades, sem nunca ter existido, na espécie humana, raça pura. Esclareçamos que raça é um conceito biológico e etnia um conceito cultural. Embora ocasionalmente várias etnias possam pertencer a uma mesma raça, como é o caso das populações indígenas brasileiras, que têm, hoje, cerca de 220 povos, todos originários de migrações asiáticas que penetraram no continente americano.

5. A humanidade caminha para a cultura global e a homogeneização antropofísica, que poderá, dependendo do desenvolvimento histórico, levar a espécie humana a se constituir em uma só grande raça. Este futuro deverá estar próximo, no que se refere a homogeneização cultural, que vem aumentando em progressão geométrica. Quanto às características antropofísicas, a homogeneização é longínqua e indefinida, pois sua evolução se processa em passos lentos.

6. Por agora, preservam-se, relativamente bem caracterizados, os grandes grupos raciais geográficos: caucasiano, mongólico e negro.

7. O Brasil, com muita razão, costuma ser chamado de “caldeirão de raças “, um verdadeiro “laboratório racial “. Efetivamente, o Brasil talvez seja um dos países onde aconteceu a maior miscigenação entre os três grandes grupos raciais geográficos. Ocorre ainda que, com sua dimensão continental, suas populações sofreram variadas influências genéticas, em diferentes regiões. No Norte e Nordeste houve considerável miscigenação tri-híbrida, com a participação de diferentes populações de brancos, índios e negros. Já no Sudeste preponderou a miscigenação bi-híbrida de brancos com negros, formando o mulato, o qual poderia ser considerado como uma “raça emergente “. No extremo Sul (PR, SC e RS) houve preponderância caucasiana, embora a influencia negróide e uns poucos genes índios não possam ser desprezados.

Recomendações

Quando se torna necessário, para fins de estudos cefalométricos, diferenciar distintas populações brasileiras, recomenda-se caracterizar as suas origens, especificando: ascendência racial; área geográfica de onde provieram e nacionalidade. Deve-se classificar, por exemplo, os caucasianos como de origem ibérica, mediterrânea ou anglo-germânica, acrescidos de suas nacionalidades. Ainda que as fronteiras das nações não caracterizem raças, elas são representativas de algumas tendências morfológicas. Esta tem sido a fórmula encontrada pelos estudiosos na literatura internacional antropofísica. As principais ascendências dos grupos brasileiros são: Caucasianos Ibéricos (Portugueses e Espanhois). Caucasianos Mediterrâneos (Italianos). Caucasianos Angio-Germânicos (Alemães). Mongóis ameríndios (índios das 3 Américas). Mongóis Nipônicos (Japoneses). Sino-Mongóis (Chineses). Negros do Sul da África. Negros do ocidente e centro de África.

Conceitos

RAÇA – Grupos de uma mesma espécie, interfecundos, que têm em comum características físicas próprias e hereditárias.

ETNIA – Grupos da espécie humana que têm em comum características culturais marcantes. Um grupo étnico pode ser uma nação (não obrigatoriamente); um povo (como os judeus); um grupo lingüístico (como os índios que falam a língua Jê); uma minoria dentro de uma nação (como o negro norte-americano) ou um grupo religioso (como os amish).

Sugestão

Os mulatos e os nordestinos, grupos bem caracterizados no cenário brasileiro, deveriam ser melhor estudados, com fins ortodônticos, sob o ponto de vista cefalométrico.

 

* Cirurgião-Dentista, Especialista em Ortodontia CFO, Pesquisador no Burlington Growth Centre da Universidade de Toronto.

** Professor Titular, Departamento de Genética, Instituto de Biociências, Universidade Federal do RGS – Signatário da Declaração da UNESCO de 1964 sobre os aspectos biológicos da questão racial.

*** Antropóloga – Ex-Professora Titular (por 30 anos) do Museu Nacional da Universidade Federal do RJ – Professora de Paleantropologia Humana e Antropologia Física no Mestrado de Anatomia da Universidade Estadual da RJ – Professora Adjunta, Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual do RJ.

**** Pós-graduado em Ortodontia pela Universidade de Bonn, Alemanha – Doutorado em Ortopedia Maxilar pela Univesidade Bonn, Alemanha – Chefe do Departamento de Clínica Infantil da Faculdade de Odontologia da Universidade Paulista, Sp – Professor Titular de Ortodontia da mesma UNIP – Coordenador do Curso de Especialização em Ortodontia da mesma UNIP.

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